segunda-feira, 6 de setembro de 2004

A dignidade Humana

Poucas coisas na vida têm sido mais desafiadoras para a reflexão moderna que o resgate do valor do ser humano, independentemente de sua raça, cor, conta bancária, currículo, etc., Uma das grandes verdades universais é que o ser humano tem uma dignidade inerente em si mesma, e esta deve ser sempre encontrada, e, em alguns casos, resgatada.

A grande questão humana, antes de ser filosófica, tem que ser antropológica. Porque o valor do ser humano deve ser o fundamento de toda reflexão epistemológica, religiosa ou existencial.

Mas como tem sido desprezado o valor do homem, sua dignidade enquanto ser...

Por causa desta moeda ser tão desvalorizada, observamos estarrecidos cenas como esta recentemente acontecida na catástrofe russa que deixou cerca de 350 pessoas mortas, sendo a maioria crianças e adolescentes.

O ser humano tem sido desvalorizado em massacres como o da Ruanda. "Ruanda-de-um-milhão-de-mortos, daquele Vietnã cozido a napalme, daquelas execuções em estádios cheios de gente, daqueles linchamentos e espancamentos daqueles soldados iraquianos sepultados vivos debaixo de toneladas de areia, daquelas bombas atômicas que arrasaram e calcinaram Hiroshima e Nagasaki, daqueles crematórios nazistas a vomitar cinzas, daqueles caminhões a despejar cadáveres como se de lixo se tratasse. De algo sempre haveremos de morrer, mas já se perdeu a conta aos seres humanos mortos das piores maneiras que seres humanos foram capazes de inventar. Uma delas, a mais criminosa, a mais absurda, a que mais ofende a simples razão, é aquela que, desde o princípio dos tempos e das civilizações, tem mandado matar em nome de Deus"[1]. O que nos chama a atenção é que no centro de todas estas cenas absurdas, muitas vezes usa-se o nome de Deus para se justificar os massacres, mas o cerne da questão, de fato, é que a vida se banalizou, se coisificou, tornou-se objeto de troca, de manipulação, de exploração e de abuso. Perde-se a dignidade humana. Perdeu-se a noção do para que existimos, e da dignidade inerente que todos nós temos, por sermos humanos, simplesmente humanos.

Um dos primeiros conceitos que encontramos nas Escrituras Sagradas, é que o homem foi feito "A Imagem e semelhança de Deus". [2] Sua dignidade existe pela sua procedência. Ele é um ser diferenciado dos outros, criado de forma distinta das demais criaturas. Deus o fez de forma pessoal, e lhe deu responsabilidades maiores, deu-lhe domínio, inteligência, criatividade, capacidade de raciocinar, de se relacionar, de amar não apenas de forma instintiva, mas de forma madura e responsável.

Mas o homem perdeu sua identidade. Esqueceu-se do seu eidos.[3] Não sabe mais que cara possui, qual é sua feição. Temos o homem máquina, o homem produto, o homem objeto, o homem alienado, o homem coisa, o homem robotizado, e as designações poderiam se multiplicar ad infinitum nesta adjetivização da natureza e do ser do homem.

Por perdermos a referência, agimos tresloucadamente. Sacrificamos a nossa existência. Morremos e matamos sem sentido. Banalizamos a vida quando o ser humano não se encaixa no perfil que julgamos trazer dignidade. Deficientes, mendigos, índios, raças diferentes, ideologias diferentes, cores passam a roubar o valor do ser humano, pois o vemos, não na sua essência (aquilo que ele é), mas nos seus acidentes (sua história, herança, cor, religião, etc).

M. Luther King Jr no seu famoso sermão I have a dream, afirmava que sonhava com um dia quando o homem seria julgado não por causa da cor de sua pele, mas pelo seu caráter. Este dia precisa ser sonhado e desejado por todos nós. Menosprezamos pessoas de classe social diferente, porque achamos que elas são menos que são.

Durante nove anos morei fora do Brasil. Certa vez me perguntaram se no Brasil existia racismo. Orgulhosamente respondi que não. Acreditava eu, que não havia conflitos inerentes entre raças, que os negros não eram desconsiderados por serem negros. Mas hoje entendo que minha análise estava errada. Roubamos a dignidade do pobre, do necessitado, e nos julgamos superiores a pessoas de classes sociais que não estão no nosso mesmo nível cultural. Temos um sofisticado racismo social, tolo e ignorante, mas tão presente nas classes dominantes.

Este texto de Cristovam Buarque, exprime o meu sentimento:

Em nenhum outro país os ricos demonstram mais ostentação que no Brasil.. Apesar disso, os brasileiros ricos são pobres.Na verdade, a maior pobreza dos ricos brasileiros está na incapacidade de verem a riqueza que há nos pobres. Foi esta pobreza de visão que impediu os ricos brasileiros de perceberem, cem anos atrás, a riqueza que havia nos braços dos escravos libertos se lhes fosse dado o direito de trabalhar a imensa quantidade de terra ociosa de que o país dispunha. Se tivessem percebido essa riqueza e libertado a terra junto com osescravos, os ricos brasileiros teriam abolido a pobreza que os acompanha ao longo de mais de um século. Se os latifúndios tivessem sido colocados à disposição dos braços dos ex-escravos, a riqueza criada teria chegado aos ricos de hoje, que viveriam em cidades sem o peso da imigração descontrolada e com umapopulação sem miséria.A pobreza de visão dos ricos impediu também de verem a riqueza que há na cabeça de um povo educado. Ao longo de toda nossa história, os nossos ricos abandonaram a educação do povo, desviaram os recursos para criar a riqueza que seria só deles, e ficaram pobres: contratam trabalhadores com baixa produtividade, investem em modernos equipamentos e não encontram quem os saiba manejar, vivem rodeados de compatriotas que não sabem ler o mundo ao redor, não sabem mudar o mundo, não sabem construir um novo país que beneficie a todos. Muito mais ricos seriam os ricos se vivessem em uma sociedade onde todos fossem educados.CRISTOVAM BUARQUE, O Globo, 12/02/2001

Conclusão:
Precisamos resgatar o conceito da dignidade humana. Como um ser criado por Deus para se relacionar com o Criador, e com aqueles que estão ao seu lado. Resgatar a capacidade de ver o outro, com os olhos de Deus, nos capacitaria a sermos mais parecidos com o próprio Deus e geraria uma nova sociedade, firmada no princípio de que todos são iguais perante a lei, sem corrermos o risco de afirmar como George Orwell no seu clássico animal farm "Mas alguns são mais iguais que outros".

A grande questão humana, antes de ser filosófica, tem que ser antropológica.


[1] Jose Saramago, O Fator Deus.
[2] Gen 1.26
[3] Eidos, é a palavra grega, traduzida na Septuaginte, para se referir ao homem como imagem e semelhança de Deus.

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