quarta-feira, 15 de fevereiro de 2006

A Universalidade da Fé

Todos cremos em alguma coisa. Religiosidade e credulidade são coisas próprias da raça humana. Carl Gustav Jung, famoso psicólogo desenvolveu a tese do arquétipo humano ou inconsciente coletivo, segunda a qual, todos os seres humanos teriam introjetados em si determinados conceitos culturais e universais e um destes seria Deus.
Nenhuma sociedade humana, exceto o modernismo, com o princípio fundamental da razão acima de todas as coisas, ousou prescindir a idéia de Deus. O resultado foi interessante, porque enquanto Nietzsche proclamava a morte de Deus, uma chuva de outros deuses desceu sobre a humanidade, e um dos conceitos característicos da pós-modernidade é o da espiritualização. Os homens estão cada vez mais fascinados pelo místico e sobrenatural, algumas vezes com grandes prejuízos para si mesmos, porque enveredam por caminhos absolutamente desconhecidos e por fronteiras do inimaginável, de onde, muitas vezes, não se tem condições de retornar com sanidade mental.
Bem já dizia Mário Quintana no seu pequeno verso a grande surpresa: "Mas que susto não irão levar essas velhas carolas se Deus existe mesmo..." (Caderno H)
Fé significa fundamentar a vida num fundamento fora de si mesmo”. Segundo Rubem Alves, “mesmo na ciência não se pode ir para a frente sem o risco da fé a uma visão de esperança” (R. Alves, o enigma da religião, pg. 136). Assim, segundo Alves, “estamos condenados à religião. Não se pode viver por certeza, mas por visões, riscos e paixões. É provável que nos envergonhemos disto e que vistamos nossos valores e sonhos com as vestes da ciência” (Rubem Alves, o enigma da religião, Pg. 137), mas “todos aqueles que tiveram que criar, tiveram seus sonhos proféticos e sinais astrais - e fé na fé” (R. Alves, O enigma da religião, pg. 137 citando Niestzsche).
“Não cremos porque chegamos a uma conclusão... Ou porque fomos vencidos por alguma emoção. É uma transformação dentro da mente causada por um poder que está acima da mente, uma colisão com o inacreditável que nos força a crer” (Abraham J. Heschel - O homem não está só, pg. 79).
Basta sermos humanos para crer. Todos cremos em alguma coisa. Os pagãos constroem seus templos e os ateus glorificam seus deuses, criados à sua própria imagem. Aliás, este é o conceito fundamental de um ídolo: Uma idéia, ou deus, ou santo que construo à minha imagem e semelhança, mas ainda assim, constituo-o no meu deus, com todos vícios e defeitos imanentes em mim mesmo.
A maioria de nós é capaz de dizer o que pensa a respeito da sociedade, da ordem, da política e da lei, mas estes pensamentos são construídos não dentro de um vácuo, mas dentro de um sistema de crença que consideramos valioso, por isto, os homens se parecem com seus deuses.
Pessoas que crêem num Deus duro e inflexível tendem a se comportar de forma legalista e acusatória com os outros – reproduzem assim seu conceito de Deus. Pessoas com um conceito de um Deus amoroso, tendem a construir relacionamentos também fundamentados no amor. Não é de se admirar que no Islamismo o conceito de Deus como Pai não exista. Alá é forte, poderoso, soberano, mas Alá não é Pai.
Jesus, no entanto, ao se referir ao seu Pai, o chama escandalosamente de paizinho (A expressão Aba Pai, que ele emprega tem esta conotação). Alguém carregado de afeto, onde podemos reclinar nossos ombros e dormir despreocupadamente.
Nenhum homem é maior que seu Deus. Sua divindade determina seu caráter. Falando nisto, se você não sabe ainda qual é o seu Deus, pergunte a si mesmo: "A quem tenho amado, temido e servido mais do que Deus?". Este é o seu ídolo, mas também este é o seu Deus.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2006

“Não furtarás”-Oitavo Mandamento

Existe muita variação desta temática nos dias de hoje. Certamente achamos que não roubamos, mas quando analisamos de forma mais profunda este mandamento é bom ficarmos atentos para suas implicações. Antes de mais nada, porque ele não fala diretamente de roubo, mas fala de furto.
Qual é a diferença entre roubo e furto? Roubar é algo agressivo, frontal, direto. É tirar de forma objetiva das mãos do outro aquilo que lhe pertence. Furtar já indica alguma coisa mais sutil, furtiva, escondida, camuflada.
Todas culturas possuem pecados endêmicos, difíceis de serem curados, que passam de uma geração para outra. Em muitas destas culturas, os conflitos raciais e/ou religiosos, valores perniciosos são transmitidos sem que, aparentemente, seja possível serem reparados. É um legado maligno. Gerações inteiras sofrem deste mal que tende a se repetir e a perpetuar como se fosse um estigma.
Na sociedade brasileira, existe uma pandemia destrutiva chamada corrupção. Ela se institucionaliza, se populariza, vem se perpetuando de geração para geração e de repente parece que a coisa tem que ser assim mesmo. Achamos que temos o direito de lesar: O governo lesa o cidadão com altos impostos, e o cidadão lesa o Estado com fraude e com sonegação. O político se julga no direito de furtar, o funcionário de lesar o seu patrão, sendo este público ou privado. O pecado cultural de nossa sociedade brasileira é o furto!
Reter o salário dos trabalhadores, impedir o acesso à terra para produção, falsificação de documentos, subornos, roubos baseados em nossa ganância, leis opressivas e impostos achacadores, atentam contra o direito e ferem o oitavo mandamento.
“Os pecados proibidos no oitavo mandamento, além da negligência dos deveres exigidos são: o furto, o roubo de homens e o receber qualquer coisa furtada; o tráfico fraudulento, pesos e medidas falsas, o remover marcos de propriedades, a injustiça e a infidelidade em contratos entre os homens ou em administrar negócios de outrem à nós confiados; a opressão, a extorsão, a usura, as peitas, as vexatórias forenses, todo o cerco injusto de propriedades e despejo injusto de inquilinos, a acumulação de gêneros para encarecer os preços, os meios ilícitos de vida, e todos os outros modos injustos e pecaminosos de tirar ou reter de nosso próximo aquilo que lhe pertence, ou de nos enriquecer a nós mesmos, a cobiça, a estima e o amor desordenados dos bens mundanos, os cuidados e esforços receosos e demasiados em obtê-los, guardá-los e usar deles; a inveja da prosperidade de outrem; assim como a ociosidade, a prodigalidade, o jogo dissipador e todos os outros modos pelos quais indevidamente prejudicamos o nosso estado exterior; e o defraudar a nós mesmos do devido uso e conforto da posição em que Deus nos colocou” (Catecismo Maior, & 142).
Num excelente romance de Hosseini, “o caçador de pipas”, ele faz uma afirmação muito importante: “Existe apenas um pecado, e esse é roubar, porque os outros são simplesmente variações do roubo (...) Quando você mata um homem, está roubando a vida. Está roubando da esposa o direito de ter um marido, roubando dos filhos um pai. Quando mente, está roubando de alguém o direito de saber a verdade. Quando trapaceia, está roubando o direito a justiça. Entende?”.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2006

Revelação e razão

Uma das questões filosóficas e teológicas clássicas na história da humanidade é o papel da revelação e razão no saber humano. Seria possível conhecer, apreender, através de um saber intuitivo e místico que vá além da razão? Isto é, seria possível que forças sobrenaturais nos revelassem verdades que a mente não seria capaz de abstrair?
Na linguagem de Brown, revelação significa o que Deus falou acerca de si mesmo; refere-se ao fato de que o metafísico apresenta verdades que de outro modo não seriam conhecidas. A razão, é o processo de alcançar uma compreensão a partir de fatos e declarações que passam pela epistemologia e podem ser objeto de discussão lógica, e que desta forma poderia ser transmitida a outras pessoas.
Pensando em revelação, três questões são essenciais. A fundamental é: "será que Deus se comunica ou tem interesse em falar conosco?" A segunda: "se Deus fala, é possível saber o que e quando?" A terceira: "se Deus fala, não seria interessante procurar ouvi-lo?"
Existe uma diferença sutil entre o pensamento do ateu e do agnóstico. O ateu afirma: "Não há Deus!", portanto, esta hipótese filosófica não existe. O mundo assim seria entregue à sorte e a azar, sendo um subproduto do acaso. Não há providência, nem teleologia, a história seguiria um movimento cíclico e espiral, sem nenhum propósito maior a não ser repetir-se indefinidamente.
O Agnóstico diz: "Deus existe, mas ele é um poder frio e silencioso". Um ser distante. Portanto, apesar de sua realidade ontológica, ele não interfere no curso da história, não ouve orações, não possui identificação com a humanidade sendo alheio às suas dores, aflições e angústias e, por isso, continuamos no vácuo de nossa fútil existência histórica.
O pensamento cristão afirma que Deus existe e que oração é um poder revolucionário, transformador, já que se dirige ao trono daquele que governa todas as coisas. Assim, "orar é perigoso", como disse o teólogo alemão Emil Brunner. Deus ouve, vê, julga os oprimidos, e apesar da aparente vitória dos ímpios, ele vai julgar a terra, indivíduos e nações. O cristianismo afirma também que Deus falou na história, muitas vezes, aos pais, pelos profetas, e que nos últimos dias nos falou por meio de seu filho Jesus (Hb 1.1-3).
Revelação é uma linguagem cristã. Deus não apenas existe, mas ele interage na história geral e particular. Ele se revela, habita num alto e sublime trono, mas participa de nossas lágrimas, ouve nossas orações e atende aqueles que clamam por sua ajuda, trazendo salvação, restaurando o cansado, renovando as forças do aflito.
A razão, sem a revelação, torna-se um saber incompleto, vê apenas um lado da vida, sendo limitado para lidar com questões que exigem respostas aos arquétipos e ao sentido da vida humana. Perder a dimensão da revelação é olhar para a vida sob uma única perspectiva. Conhecer a Deus e ser conhecido por ele faz uma enorme diferença na apreensão do saber.
Há muito saber não acessível à razão: saber intuitivo, místico, sobrenatural, emocional. Por isto o apóstolo Paulo falava: "cantarei com o espírito, mas também cantarei com a mente". Articular esta ponte entre a lógica humana e o saber revelado, poderia ser algo revolucionário em nosso ser interior.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2006

O homem invisível

Um dos maiores problemas do ser humano é o sentimento de exclusão e indiferença. Nada pode ser mais cruel para a alma que o descaso e o abandono. Jean Paul Sartre, um dos pais do existencialismo francês afirmou: “Se não nos olham, secamos”.
Esta é a temática recente de um texto de Gilberto Dimenstein, conhecido articulista da Folha de São Paulo, no seu livro com título despretensioso e vago, “O Mistério das Bolas de Gude” (Papirus), no qual narra histórias de invisibilidade e encantamento.
Este é o seu terceiro livro de reportagens, em que registra casos de pessoas excluídas da sociedade e que foram “despertadas” passando a estabelecer uma relação de pertencimento com o mundo. Para ele, a invisibilidade é a principal causa da violência, maior ainda do que a pobreza. “O que gera a violência é a sensação de não ter conhecimento, de não pertencer a sociedade”. A tese é corroborada por casos documentados em 16 anos de investigação jornalística.
Dimenstein afirma que em Nova York, capital onde viveu por três anos, assistiu a uma série de iniciativas de inclusão social que reduziram a violência. “Não era apenas só dar grana, era oferecer meios para as pessoas se expressarem por meio da dança, da música, da poesia, do esporte”.
Um dos fantasmas presentes ao homem urbano é o do anonimato. Você pode viver ao lado de pessoas com as quais você nunca conversa. Ter um apartamento que percebe ruídos do outro lado e nem ainda assim saber que face têm os seus vizinhos e muito menos identificar suas dores e dilemas. Vivemos sós em grandes cidades, trabalhamos compartimentalizados e segmentados. Isto traz outras crises de alma como a despersonalização e alienação.
É o fenônemo da invisibilidade. Não ser percebido pelo outro e não ter alguém que nos olhe. A necessidade de sermos vistos é tão grande que certas crianças provocam em seus pais diferentes atitudes de irritabilidade para chamar-lhes atenção, ainda que isto lhes cause alguma dor e disciplina. A punição assim torna-se uma reação neurótica, mas ainda preferível à indiferença e ao abandono psicológico.
Jung afirmou que “o vazio é a maior neurose da humanidade”. Este vazio pode perfeitamente ser identificado com esta ausência de sentidos e de significados, um relacionamento de excluídos, a invisibilidade. Todos nós precisamos estabelecer uma relação de pertencimento com o mundo e com o cosmos.
Gostaria de concluir esta questão, analisando o que se convencionou chamar de “vazio cósmico”. Neste caso, a invisibilidade encontra matizes na relação com o universo e com a sacralidade humana. Muitos de nossos conflitos poderiam ser resolvidos se, ao menos, pudéssemos entender que o nosso cósmico não é impessoal, vazio e frio, mas que ele possui uma referência a-histórica e sobrenatural em Deus. A Bíblia sugestivamente afirma: - “Este é o Deus que vê”. Esta percepção se deu na alma de Hagar, mãe de todos árabes, quando fugia abandonada e julgando-se invisível no meio do deserto, sem rumo e sem direção. Aquela percepção espiritual transformou sua história e tem trazido sentido à milhares de pessoas ainda hoje. Entender existencialmente que Deus é mais que algo institucional,que é alguém pessoal, que nos conhece e sabe quem somos altera toda nossa cosmovisão, nossa forma de ser e nossa interpretação da vida.

A COSMOVISÃO CRISTÃ

Todos nós temos uma cosmovisão, embora nem sempre estejamos conscientes disto ou talvez não entendamos corretamente o significado deste termo.

Cosmovisão tem a ver com a forma que lemos e interpretamos os valores, sistemas, crenças, ética, etc., isto é, o jeito de encarar a vida. Cosmovisão precede atitude, comportamento, relacionamento e afeta todas as nossas decisões.

A cosmovisão do homem está intimamente ligada à sua religião. Alguns são ateus dizendo-se cristãos: sua forma de ler, ser e interpretar a vida não tem absolutamente nenhuma correlação com o pensamento cristão, ou seja, aquilo que Cristo ensinou, professou e viveu. Por isto Ghandhi afirmou, para grande espanto da cristandade, que amava o Cristo que pregávamos, mas odiava o cristianismo que vivíamos.

Muitos que se dizem cristãos são ateus na prática. Outrossim, tenho visto alguns que declaram ateus, mas não conseguem desvencilhar-se dos princípios cristãos. Certamente Jesus repudiaria boa parte do cristianismo superficial que vivemos, aliás, certa feita afirmou que muitos dos seus pseudo discípulos o chamavam de Mestre, mas não faziam o que ele mandava.

"A melhor maneira de...analisar o cristianismo é olhar para Jesus Cristo" (Colin Chapman).

A pessoa histórica de Jesus de Nazaré é o ponto de partida de toda cosmovisão cristã. Nele, os cristãos encontram o paradigma de tudo o que se deve crer e o que se deve praticar. A espiritualidade cristã é cristológica. Resta perguntar como era este Jesus?

1. Revelou o mistério sem perder a dimensão da humanidade. Jesus não tinha medo da verticalidade da experiência religiosa: orava, jejuava, praticava exercícios devocionais, mas também não era alienado da história humana: estava envolvido com o que sofre, com o pobre, com o marginalizado. Basta ler o evangelho para perceber isto;

2. Articulou o natural com o espiritual, fez a ponte entre o humano e o divino. Era ao mesmo tempo alguém que experimentava a realidade de Deus, mas que nunca se distanciou de gente ferida, tanto que optou por morar no meio dos desprezados galileus. Na sua forma de praticar a espiritualidade, participou politicamente de seu tempo, exerceu seu mandato cultural, sua cidadania, fez crítica aos poderosos insensíveis de seu tempo, mas ainda assim, encontrou espaço e significado na relação com Deus, o Pai. Sua espiritualidade não era ativista.

Concluindo afirmaria que se nossa cosmovisão é cristã, não deveríamos, em hipótese alguma, sob risco de fragmentar a estrutura de nossa fé, deixar de olhar para a intrigante pessoa de Jesus de Nazaré. Nele encontramos o significado maior de viver, ler e interpretar a vida. Jesus nos ensina a ser humano, no sentido mais pleno desta palavra.