sexta-feira, 18 de fevereiro de 2005

PAIXÃO PELA VIDA

Sempre nos chocamos quando somos confrontados com cenas de violência. Conheço pessoas que sentem dificuldade em pegar no sono quando tomam conhecimento de tais acontecimentos. Por mais incrível e paradoxal que pareça, guarde este sentimento, ainda que doloroso, como algo valioso em você. Sofrer, amar e se indignar é algo profundamente positiva. O maior problema é quando vemos as cenas mais brutais na televisão e na vida e começamos a banalizá-la e a achar tudo isto normal. Quando achamos que a morte, a dor e a agressão devem ser vistas como coisas normais, porque a apatia tem o poder de tirar nossa alma.

O problema é que quando a violência se torna corriqueira, tendemos a banalizar a vida, e esquecermos que ela é o maior valor que temos. Esquecemos nossa relação com o criador e o alto valor que ele deu ao seres humanos ao afirmar que foram feitos à sua imagem e semelhança. O conceito da Imago Dei tende a se perder quando a vida é menosprezada, valores são saqueados e arromba-se a dignidade de nossa alma.

Jurgen Moltmann, no livro "A paixão pela vida", afirma que o grave problema com a indiferença, é que ela consegue roubar nossa vida. A insensibilidade tende a se aninhar em nós. Vemos o mal e não mais nos assustamos com ele. Experimentamos violência e somos violentados, sem que isto gere em nós tristeza. Acostumamos com a morte. O extraordinário passa a se tornar o comum, e o trágico corriqueiro.

Alguns anos atrás uma socióloga carioca resolveu mergulhar no submundo da mendicância num gueto de catadores de lixos, miseráveis e desvalidos no Rio de Janeiro. Na medida em que se aproxima do grupo, sentiu enorme rejeição. Os mendigos não permitiam que ela pudesse estudar a situação deles, ameaçaram-na e a hostilizaram. Como precisava fazer pesquisa de campo, esta pesquisadora tomou uma decisão radical: resolveu se tornar uma mendiga para entender como funcionava aquela sociedade. No seu excelente e dramático trabalho de doutorado, ela conta quanta violência presenciou entre eles. Policiais extorquiam dinheiro e agrediam pessoas, abusos sexuais eram freqüentes, o conceito de família assumia um significado totalmente diferente que trazemos. Um relato que me atraiu foi o de que o mau cheiro do local onde ela passou a dormir tornou-se o maior incomodo a enfrentar. Era quase impossível respirar ao lado daquele esgoto. Mas ela afirma que, com o passar do tempo, ela se acostumou ao cheiro.

Podemos nos acostumar com o cheiro da desgraça, da desumanização, da agressão e da dor. Quando isto acontece, perdemos a capacidade de nos indignar com a violência, que assume muitas facetas: doméstica, pública, social, sexual, religiosa. Com a miséria, com a exploração da pobreza, com as indústrias e feudos da domesticação de seres humanos. Podemos nos acostumar com a agressão que praticamos e com a que geramos, achando que tudo está correto. O teólogo alemão, Henry Niemüller, foi um dos homens que teve um lugar nas alamedas dos justos por proteger o povo judeu. Próximo ao Museu do Holocausto em Jerusalém, tive o privilégio de ler pessoalmente uma célebre afirmação sua gravada em bronze:
"Primeiro vieram buscar os anarquistas,
mas como eu não sou anarquista, não me preocupei.
Depois vieram buscar os comunistas,
mas como eu não sou comunista, não me importei.
Depois vieram buscar os judeus,
mas como eu não sou judeu, também não me importei".

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2005

Viva o divórcio

"Os filhos do divórcio" foi o tema do artigo de capa da revista época, edição 349, de 24.01.2005. Obviamente o assunto é de extrema relevância para nossos dias, já que o divórcio tem assumido proporções estatísticas surpreendentes. Em algumas regiões do Brasil, o divórcio já chega a 50%. Isto significa que, de cada 100 casais que hoje assumem o compromisso do casamento, 50% deles divorciarão num futuro breve. Obviamente devemos ser menos preconceituosos e mais preparados para lidar com a questão, já que vidas estão envolvidas neste doloroso processo.
O que me assustou, nesta reportagem, contudo, foi a apologia do divórcio. Ao chegar ao final da reportagem, tive a impressão de que deveria divorciar porque este era o caminho mais saudável, e psicologicamente mais prático para a minha vida e para a vida de meus filhos. Nada pode ser mais enganoso que esta idéia.
Se é certo que devemos cuidar desta geração que cresce sem ambos os pais, e que é nossa responsabilidade ajudar na restauração daqueles que sofrem um desencanto e passam por um processo de divórcio, também é certo que não devemos olhar com romantismo esta situação. Divórcio é um processo extremamente dolorido. Enganam-se aqueles que acreditam que é um processo simples como trocar de carro, ou mudar-se de uma casa para outra.
Estima-se que são necessários cerca de 5 anos, em média, para que os reajustes resultantes do divórcio sejam feitos. Existe o reajuste financeiro, familiar, emocional, espiritual e até mesmo do circulo de amizades. No financeiro, são as contas que precisam ser divididas, dívidas que precisam ser assumidas por uma ou outra parte, a dolorosa partilha de bens. No campo emocional, o processo de ruptura e de-cisão (separo intencionalmente este termo para que se saiba tratar-se de uma cisão). São fotografias que precisam ser desprezadas, histórias que devem ser esquecidas, isto não considerando ainda o fato de que uma das partes ainda esteja apaixonada e não gostaria de ver um desfecho tão dramático deste sonho de uma noite de verão.
O círculo de amizades também é reavaliado. Determinados amigos não conseguem manter relacionamento com os dois, toma-se partido, estabelece-se julgamentos. Além do fato de que programa de família e de casais, via de regra, é diferente de programa de solteiros e descasados.
Existe ainda o problema espiritual: culpas, acusações, a posição da igreja que se participa. Divórcio é um processo criticado pela maioria das religiões e na visão católica assume ainda uma dimensão sacramental. O homem e a mulher de fé precisam lidar com estas realidades.
Apesar da gravidade de todas estas coisas, existe o drama dos filhos. E não me venham dizer, como insinuou a revista época, que filhos de divorciados crescem emocionalmente mais estáveis e seguros que um filho de um lar onde pai e mãe exercem suas funções. Obviamente se se toma exemplos mais drásticos, de lares disfuncionais, neuróticos e psicóticos, obviamente você pode chegar a esta conclusão, mas a maioria dos lares possui espaço para aceitação e crescimento emocional dos filhos. A exceção não pode se tornar a regra.
Apesar de tudo, de ter uma opinião bem crítica quanto ao divórcio, gostaria de concluir com uma palavra de esperança e de misericórdia aos que passaram por esta experiência. Divórcio não é um pecado sem perdão. Existe restauração e cura para situações dramáticas e doloridas. Não olhe o divórcio como ponto final para sua vida e a dos seus filhos. Deus dispôs a natureza com uma maravilhosa capacidade de se refazer e restaurar. Olhe o cerrado que temos à nossa volta: com o fogo torna-se seco e tórrido, mas as primeiras chuvas de verão são capazes de trazer verdor e de nos fazer crer que um novo tempo se aproxima.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2005

A festa dos foliões Dn 5

Certamente o cenário, a cultura, a língua e a forma de expressar a euforia eram diferentes, "O rei Belsazar, deu um grande banquete a mil de seus grandes e bebeu vinho na presença dos mil" (Dn 5.1), mas os motivos eram os mesmos do carnaval de hoje.
Foram convidados grandes nomes da "mídia" e política regionais. O evento atraira gente de diversos lugares. Os "carros importados", a luxúria e a riqueza chamara a atenção dos moradores locais. A cidade fora programada para este evento. Uma estrutura milionária e excêntrica fora montada para que nada faltasse ao "sambódromo", real.
Épocas distantes, motivos iguais...
A festa dos foliões estava preparada...
Aquela festa foi marcada por alguns elementos comuns aos nossos tempos:
1. "Beberam o vinho e deram louvores aos deuses de prata, de bronze, de ferro, de madeira e de pedra" (Dn 5.4). Glorificava-se e exaltava-se outros deuses. Não se promovia a glória do Deus todo poderoso. Outros interesses estavam presentes. Era uma festa para os deuses babilônicos, assim como hoje se celebra o deus Baco, deuses da umbanda e do candomblé.
2. "Então, trouxeram os utensílios de ouro, que foram tirados do templo da Casa de Deus que estava em Jerusalém" (Dn 5.3). Outra característica comum daquela festa e a da festa tupiniquim, é que em ambas, se despreza e se ridiculariza as coisas sagradas: valores, princípios, sofrem uma depreciação orquestrada e arquitetada no inferno. "Vamos trazer as coisas sagradas para zombar delas".
3. "Tu, Belsazar, não humilhaste o teu coração, ainda que sabias de tudo isto" (Dn 5.22). Lá e cá, as lições da história foram colocadas no esquecimento. Claro que sabiam de tudo, mas fizeram de conta que não sabiam, este era o momento da fantasia e da ilusão. "O estandarte do sanatório geral vai passar".
4. "Tequel: Pesado foste na balança e achado em falta" (Dn 5.27). A festa dos foliões é avaliada, considerada e julgada por Deus. Deus avalia e pesa na balança o que foi feito. É hora de um balancete. Lamentavelmente o resultado foi negativo.

Que a festa dos foliões seja antes de tudo em nós, a festa da alegria de Deus e do contentamento dele com o que somos.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2005

A festa dos foliões



Harvey Cox, intelectual e professor de Teologia na Harvard University, com quem tive o privilégio de estudar durante um semestre, escreveu um livro chamado "The feast of fools", no qual afirma que, durante a idade Média florescia, em algumas partes da Europa, um festival conhecido como A Festa dos foliões ou a Festa dos Loucos. Nessa manifestação colorida, usualmente promovida a primeiro de janeiro, até líderes religiosos geralmente piedosos e cidadãos ordeiros colocavam mascaras grotescas, cantavam insinuantes modinhas e, numa palavra, mantinham todo mundo em suspenso por suas sátiras e folias. "Durante a Festa dos Foliões, não havia costume nem convenção que não se expusesse ao ridículo, e até as personalidades mais credenciadas da região não conseguiam subtrair-se à sátira".
Lá, como cá, a Festa dos foliões usualmente desembocava em libertinagem descarada, razão pela qual sofria sempre criticas severas da liderança política e eclesiástica.
Carnaval, em nossa cultura, também tem este elemento desagregador e crítico, no qual, os valores culturais se subvertem. Torna-se uma forma de protesto, de crítica e questionamento do status quo. O problema, é que o carnaval facilmente torna-se um meio dos poderosos articularem a fantasia com a realidade para propósitos políticos e ideológicos, como afirma Chico Buarque:
"Meu Deus vem olhar,
vem ver de parte uma cidade a passar,
numa ofegante epidemia,
que se chamava carnaval.
Ah que vida louca Olerê,
Ai que vida louca Olará,
O estandarte do sanatório geral, vai passar".
O resultado: Carnaval se torna um hospício no qual o turismo passa a ser identificado com "mulatas esfregando o bumbum no nariz de estrangeiros". No qual a alegria, zombaria e a contracultura perdem espaço para a permissividade e para a fantasia, para a irresponsabilidade, descaso e descuido. As estatísticas são trágicas: O número de acidentes, as dores deixadas em lares cuja crise relacional se aguça, os relatórios policiais, tornam-se dramáticos. Certo médico afirmou que detesta dar plantão nesta época do ano, por causa das inevitáveis tragédias, brigas e arruaças.
O problema: A vida não é fantasia, nem um faz de conta. Não se pode ser folião para sempre. A folia pode ser também a loucura. A fantasia, quase sempre transforma-se em irrealidade. Não se pode brincar num baile de fantasia, acreditando que ele é permanente. Não se pode brincar com vida, sentimentos, valores morais e religiosos, com Deus, acreditando que este faz de conta nem conta faz, assim como não se resolve a dor da alma afogando a tristeza num copo e nas drogas.
Carnaval pode nos fazer perder a singularidade da alma, a leveza do ser, a alegria de Deus e a unidade familiar. Ray Charles afirmou: "viva cada dia de sua existência como se fosse o último, porque um dia você vai acertar" in Esquire