sexta-feira, 28 de fevereiro de 2003

CARNAVAL: CELEBRAÇÃO ÀS AVESSAS

Uma das boas heranças da tradição Judaico-cristã é sua capacidade de ser celebrativa. Infelizmente temos criado o esteriótipo do cristão “estraga-prazer” do religioso mau humorado, moralista e crítico que usualmente pessoas com tal perfil assume. Isto tudo torna-se, por definição, características de quem não conheceu ainda a graciosidade do Deus da bíblia e ainda luta por romper o velho conceito de um Deus temperamental e animoso que determinadas religiões insistem em propagar.

Curiosamente, a Bíblia, o livro que boa parte dos religiosos diz seguir, fala muito de celebração, principalmente no contexto vétero-testamentário. No calendário judaico sempre havia espaço para a festividade, para a celebração com muita festa, dança, bom vinho e abundante comida. O livro de Levítico (que trata das leis cerimoniais, civis e morais do povo de Israel), fala de pelo menos cinco festas fixas, estabelecidas por Deus para o seu povo. O Deus hebraico é descrito como um Deus festivo. Neste calendário anual havia lugar para a festa da Páscoa (ou da passagem), das Primícias, do Pentecostes, da expiação e dos Tabernáculos, cada uma delas relacionada aos feitos heróicos de Deus por seu povo (Lev 23.1-44). Todas estas festas eram populares, altamente festivas e tinham um lugar muito especial na agenda daquela nação. O calendário judaico era, portanto, marcado por festividades.

No Novo Testamento, o mesmo espírito de celebração estava presente. Jesus começa seu ministério e dá inicio aos seus sinais miraculosos, fazendo algo impensável para a nossa moralidade evangélica tupiniquim: Ele transforma água em vinho (Jo 2.1-12). A coisa é tão complicada que existem grupos tentando provar que este vinho não era vinho, mas era suco de uva. Bem, isto é história para um outro artigo...

Pelo seu caráter celebrativo, Jesus é mal interpretado e passa pela via crucis de ser acusado de “glutão, bebedor de vinho, amigo de publicanos e pecadores” (Mt 11.19), e mostra na parábola do Filho pródigo que, a ausência de celebração, festa e dança, está relacionada a uma atitude de superioridade moral de um filho rígido, tenso e incapaz de demonstrar misericórdia, firmado na sua justiça própria e incapaz de perceber o irmão que está sendo restaurado, e que por isso não consegue participar das danças, sente agressão aos ouvidos quando ouve a música e sente-se ultrajado quando sabe que o Pai resolve matar um novilho preparado para uma ocasião especial e que agora manda fazer um churrasco com seus amigos porque o filho perdido fora encontrado. Faltou ao filho que ficou em casa, que simboliza o religioso moralista, os símbolos marcantes da presença de Deus: Festa, alegria, celebração e dança.

Certamente tais argumentos acima podem ser usados para justificativa para a festa do carnaval. Intencionalmente conduzi o tema desta forma para que pudéssemos refletir de forma madura sobre as implicações da celebração desta festa folclórica e histórica de nosso povo. O carnaval tem tudo, menos celebração.

O problema da nossa cultura brasileira é que, na concepção popular, celebração e alegria não são temas de um povo que caminha com Deus, mas de um povo antagônico a Deus. A celebração, os gritos de entusiasmo e euforia pertencem ao universo dos pagãos e dos ímpios. Religiosos e não religiosos possuem esta mesma concepção... Por causa deste conceito deturpado, tende-se a excluir Deus dos aspectos celebrativos da vida, a sacralidade se torna ausente e até contrária à festa. A pessoa que se aproxima de Deus acredita, de forma sub-reptícia, que não pode celebrar, tem que se penitenciar, transforma a vida em um peso, e o viver em fadiga. As vestes perdem o brilho, as cores, a festividade é riscada da agenda, transforma-se em um ser triste. O resultado é caótico.

Como resposta a esta errônea interpretação, outro grupo resolve celebrar fazendo outra leitura equivocada. Se com Deus a vida é feia, sem cores e triste, vamos exclui-lo do roteiro da folia. Deus tem que se tornar ausente por ser alguém que se opõe a alegria, assim faz-se uma celebração às avessas. Então, ao se fazer uma festa folclórica, exclui-se Deus e celebra-se Baco (Um Deus pagão, donde se origina a palavra bacanal). Celebra-se assim, a orgia, o carna-val, festa onde a carne, símbolo dos nossos instintos mais primitivos e resultantes deste Id, desta força animal inerente à natureza humana, torna-se evidente. Não se celebra Deus, celebram-se instintos e impulsos que se imiscuem às fantasias submersas e tornam-se evidentes neste período do carnaval. Nestes dias, cria-se uma sociedade que sacrifica valores porque afinal de contas o limite do permissivo torna-se mais amplo.

O problema é que, o desejo pela celebração, torna-se muitas vezes o oposto. Espera-se a alegria, e ela transforma-se em pesar. Espera-se festividade e ela se decodifica em pranto. Não se celebra a vida, porque fora de Deus, toda tentativa de alegria é dissipada, todo esforço pela alegria nulifica-se.

Nas festas históricas do povo de Israel Deus estava no centro. Nem por isto, a euforia e alegria precisavam ser banidas, porque Deus não é antagônico àquilo que nos plenifica, aliás ele é o ponto no qual torna-se possível encontrar o maior sentido de viver e de amar. A perspectiva do prazer é intensa e intencionalmente presente nos textos sagrados, pois, “fora de Deus, quem pode comer, beber e alegrar-se?” (Ec 2.24-25). O carnaval faz promessas que não pode cumprir, cria expectativas que nunca se concretizarão, promete celebração e muitas vezes gera um resultado completamente oposto.

Celebração só é autêntica quando nos torna plenos. Se no final da festa o resultado é o vazio, é a dor de um coração sem resposta, de uma família fragmentada e dividida, o que se esperava nela tornou-se o oposto daquilo que ela prometia dar. Ao invés de sermos preenchidos com manifestações de paz e harmonia, tal festa tornou-se num elemento da divisão e da porfia. É uma celebração às avessas. É a anti-celebração.