terça-feira, 22 de agosto de 2023

Bolero de Ravel

 



Gosto muito de música clássica. Não sei ao certo de onde surgiu este gosto musical, mas quando fiz faculdade em Campinas, SP desenvolvi o hábito de estudar ouvindo este estilo de música. Aprendi a ouvir Haendel, Liszt, Vivaldi, Chopin, Beethoven e meu preferido, Juan Sebastian Bach. Tenho a impressão de que a influência do protestantismo britânico na minha juventude tenha contribuído nesta direção.


Recentemente senti vontade de ouvir o Bolero de Ravel. Me chama a atenção a cadência musical desta sinfonia. Ela é bem repetitiva e se não prestarmos atenção, podemos imaginar que estamos ouvindo a mesma coisa do início ao fim, mas na medida em que a música vai se desenvolvendo, ela vai introduzindo outros instrumentos e aumenta sua intensidade. Sua ruptura só é visível no final, quando assume um tom diferente e termina de forma intencionalmente abrupta.


Ao ouvi-la novamente, imaginei que ela se parece com o desenrolar da nossa própria história, introduzindo elementos novos na medida em que a sinfonia da vida se desenvolve. São sons e variações incorporados lenta e sutilmente na trajetória, que não quebram o sequenciamento, mas dão a formatação daquilo que somos. São os fatos e incidentes, eventos e pessoas, que aos poucos, tornam-se parte de nossa “musicalidade”, muitas vezes repetitiva e monótona, como vemos no bolero de Ravel. Nada muito diferente, mas que indelevelmente torna-se parte daquilo que somos, forjando nossa existência e tomando corpo em nossa vida marcada pelo cotidiano e pela rotina.


Ravel introduz lentamente os demais instrumentos, a música vai se tornando mais bela, outras vezes mais estridente e barulhenta, mas tudo vai sendo absorvido pelo compasso central que dá a harmonia necessária para que os tons entrelaçados se encaixem e se fundam na estrutura maior. Nada é irrelevante. Os ouvidos menos atentos podem nem perceber qual instrumento foi acrescentado, mas a música vai sendo forjado pela junção destes elementos e vai chegando ao seu ápice, no mesmo ritmo e compasso.


No final, um som diferente, um movimento mais forte. A música está chegando ao fim. Outros tons são introduzidos, quebrando a sequência monótona. Os sons agora tornam-se mais agudos e estridentes. Uma nova realidade se aproxima. É hora de atenção! Desconstrução. Desfecho. A retumbância e sonoridade apontam noutra direção. Há uma quebra no ritmo. O ouvido se aguça em outra direção. Mudanças apontam para novas perspectivas. 


Talvez o desfecho deste bolero possa ser sintetizado na afirmação do escritor francês Victor Hugo (1802-1885) ao se aproximar da morte: “O inverno está na minha cabeça, mas o verão eterno está no meu coração. Quando eu descer ao túmulo, não poderei dizer: terminei minha vida. Meu trabalho começará na manhã seguinte. O túmulo não é uma viela escura. É uma avenida movimentada que termina com o lusco fusco da aurora”. Assim me parece o Bolero de Ravel.

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