Tenho acompanhado com tristeza, perplexidade e compaixão os eventos relacionados a vida de Flordelis dos Santos de Souza, cantora, pastora, deputada federal entre 2019 e 2021, eleita com mais de 200 mil votos no Rio de Janeiro, posteriormente cassada pelo plenário da Câmara dos Deputados, perdendo seu mandato por quebra de decoro parlamentar, e recentemente condenada a 50 anos de prisão por homicídio triplamente qualificado, tentativa de homicídio duplamente qualificado, além uso de documento falso e associação criminosa. Seu filho biológico, ao que tudo indica, teria praticado o crime e ela seria mandante.
Minha reação de dor se dá pelo fato de ter assistido parte do documentário produzido pela Globo sobre sua vida, e saber que aos 20 anos de idade, ainda menina, imbuída por misericórdia e desejo de ajudar, residindo no Jacarezinho, a segunda maior favela da América Latina, conhecida por sua violência, resolveu abrigar na sua casa de dois quartos, mais de 20 crianças que não tinham pra onde ir, e sem a ajuda de qualquer ONG, cuidava de todas elas, limpava a casa, lavava as roupas e as mandava para a escola.
Engajou em causas sociais, ajudava crianças e adolescentes envolvidos com crimes, tráfico, uso de drogas, prostituição ou que sofriam maus tratos em casa. Na sua residência humilde chegou a abrigar mais de 100 crianças que ela ia acolhendo e cuidando como filhos, abrindo uma creche.
Aos poucos, sua vida foi impressionando as pessoas, e a televisão começou a falar dela sendo entrevistada em vários programas de grande audiência, chamando a atenção da grande mídia e se projetando. Em 1994, adotou 37 crianças, dos quais 14 bebês de uma só vez, que sobreviveram à Chacina da Candelária e que viviam em abrigos, em condições precárias.
Ela ia a bailes funk e via que crianças e adolescentes apadrinhados pelo tráfico de drogas sonhavam com uma vida melhor, conversava com eles, e dizia para eles que o melhor caminho não era trabalhar para o tráfico de drogas. Foi acusada de sequestrar crianças, mas provou na justiça que as ajudava a saírem do submundo das drogas e da prostituição. Seu trabalho ganhou atenção da mídia brasileira e em 2009 fizeram um filme sobre sua vida e nenhum dos renomados artistas com Deborah Secco, Bruna Marquezine cobraram cachê e toda a renda do filme foi utilizado para a criação e sustento do centro de reabilitação de jovens e adolescentes viciados em drogas.
O que aconteceu com a alma de Flordelis? Como ela pode se transformar em alguém que tem sido acusada de frieza e menosprezo pela vida humana? A juíza considerou que houve “audácia extremamente reprovável, planejamento de execução fria e brutal” de seu marido Anderson do Carmo. Nas filmagens feitas pela televisão ainda nos anos 90, é possível vê-la ainda adolescente, cuidando de crianças. O que a transformou numa “personalidade manipuladora”, como afirma um de seus biógrafos?
Não dá para simplesmente julgarmos a Flordelis, sem ter cuidado com nossa própria alma. Não questiono o processo jurídico, coordenado pela juíza e pelos juris que avaliaram todo processo, ouviram as testemunhas e a condenaram. Minha preocupação está em outro nível. O que pode levar a alma humana à sordidez e maldade? Quais mecanismos psicológicos lhe roubaram a simplicidade, a ternura, o exemplo de solidariedade e a transformaram em algo vil e tão condenável? Quais fatores a tornaram suscetível de tais desatinos? E o nosso coração, está isento de tais tentações e riscos?
Certa vez trouxeram a Jesus uma mulher pega em flagrante adultério, a Lei de Moisés dizia que tal mulher deveria morrer, e os que a colocaram no julgamento estavam prontos para executar a sentença. Jesus lhes disse: “Aquele que tiver sem pecado, atire a primeira pedra”, e todos se afastaram, condenados pela sua consciência.
Nenhum comentário:
Postar um comentário