Gabriel Garcia Marques no seu famoso livro "Cem anos de solidão" conta a história de José Arcadio Buendia, um dos personagens centrais do romance, que depois de uma briga numa rinha com Prudêncio Aguilar o mata com uma lança. Um dia, sua mulher saiu para beber água no quintal e retornou lívida afirmando ter visto Prudêncio junto à tina, com uma expressão triste, tentando tapar com uma atadura o buraco da garganta. Voltou ao quarto, contou ao esposo o que tinha visto, mas ele não ligou e respondeu: “Os mortos não saem, o que acontece é que não agüentamos com o peso da consciência”. Somos uma sociedade que experimenta dois sentimentos absolutamente ambíguos em relação à culpa: Negamos a existência do pecado e ao mesmo tempo vivemos culpados.
Ora, se pecado é algo puramente cultural não faz sentido viver culpado. Pecado, que é um termo absolutamente religioso, implica que existe uma lei absoluta passível de ser quebrada e que existe o ofensor e o ofendido. Se pecado não existe, a culpa, por conseguinte, não deveria existir. No entanto, quando mais se tenta negar a culpa, mais se percebe uma geração culpada. Obviamente, nem toda culpa é ruim, “Sentir-se culpado de alguma coisa que não é má é desnecessário e doentio. Não se sentir culpado de algo que é mal, é também doença”. Scott Peck, The people of the lie.
Obviamente existe sentimento de culpa sem culpa, resultante de um processo neurótico e repressor de uma sociedade doentia, mas também é certo pensar que existe culpa sem sentimento de culpa, em situações nas quais a pessoa não é capaz de perceber limites, nem o senso comum. Quando tal culpa não é percebida, há uma neurotização da alma que desemboca na psicopatia e na sociopatia. Nestes casos, mesmo quando o crime mais hediondo é praticado, a consciência da pessoa parece não ser incomodada nem afligida. Em tais situações, a liberdade que foi dada para a vida, torna-se um instrumento banal da morte, como no recente caso do serial killer conhecido como Corumbá.
A culpa penetra costumeiramente a alma humana e se torna tirânica quando escraviza aquele que deveria estar livre, mantém culpado quem já foi absolvido. Muitos vivem prisioneiros de seus fantasmas e são comumente detidos atrás de grades invisíveis. São pessoas acorrentadas ao passado. Muitas doenças são decorrentes de uma alma culpada, que paralisa e imobiliza as pessoas, como relata Shakespeare em Lady MacBeth, cujo personagem tem suas mãos ensangüentadas e vive gritando num interminável processo de dor sem saber onde suas mãos poderão ser lavadas.
O problema é que a culpa é traiçoeira, como um poço sem fundo: Quanto mais você tira terra mais profundo vai ficando. Ela escraviza, paralisa o potencial, enfraquece a energia e rouba todo entusiasmo das pessoas. A Bíblia afirma que a alma culpada correrá até a morte e ninguém poderá detê-la (Pv 28.17). Em quase todos estes processos de culpa percebe-se que a incapacidade da pessoa de se sentir perdoada.
Mas como se pode perdoar o “pecado” que não se reconhece? Como ser absolvido de um mal que não foi praticado? Se não existe pecado real, como se pode perdoar uma culpa real?
Creio que seria mais fácil se admitíssemos nossa culpa, porque assim poderíamos ser absolvido de forma real de nossa escravidão. Negação da doença nunca ajudou no processo da cura do enfermo. Parece que esta foi a leitura que Jesus fez da vida. Diante da mulher que estava para ser apedrejada ele diz: “Nem eu te condeno, vá e não peques mais”. Ele não nega seu erro nem o ignora, mas a absolve sabendo exatamente o que a culpava, e ela é assim restaurada. Para Jesus, pecado era algo muito real, mas a culpa também tinha remédio, cuja cura foi providenciada por ele mesmo, que no seu processo vicário de nos substituir na cruz assumiu a culpa em nosso lugar, como o Cordeiro bendito que tira o pecado do mundo.
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